8 de junho de 2012



É natural sempre esbarrar no clássico “o livro é muito melhor que o filme” quando se trata a respeito de adaptações cinematográficas de obras literárias. O que algumas pessoas costumam ignorar é o abismo de diferenças entre  essas duas linguagens.
Cinema e literatura possuem especificidades e léxicos completamente distintos. E isso não é, de modo algum, uma coisa negativa. Porém, o mais grave nesses casos é  desconsiderar o fator humano:  uma adaptação  depende daquilo que diretor e roteirista consideraram a essência do romance e de uma  série de detalhes, técnicos ou não, que se precisa enfrentar na transposição da literatura para outra linguagem. Dessa maneira, apenas copiar ao texto original, omitindo passagens aqui e ali, não resulta num produto final satisfatório ou minimamente interessante. O que fará com que um longa seja tão rico quanto a obra literária que lhe deu origem será o ponto de vista apresentado pelos envolvidos no projeto.
Dito isso, é preciso ressaltar que não poderiam ter escolhido uma figura mais interessante que Michael Haneke para adaptar o romance da escritora austríaca Elfried Jelinek.  Oscilando entre a autobiografia e a ficção, Jelinek constrói em  A Pianista, romance que deu origem ao longa A Professora de Piano, uma obra que revela o lado obscuro tanto do humano, quanto da arte. Marcado por traços como a obsessão, a irracionalidade, a  cobrança e um medo extremo do fracasso, o romance nos apresenta Erika Kohut (vivida no longa pela talentosa Isabelle Huppert), uma professora do conservatório de Viena que carrega em seu íntimo uma dor universal. O que ela ensina é grandioso por ter sido capaz de ultrapassar culturas e épocas, mas os concertos tocados por ela aparecem ao lado de uma dor tão intrínseca e palpável que a beleza acaba por se perder, dando lugar a um questionamento que nos acompanha durante toda a leitura: estaríamos condenados, mesmo no que temos de mais bonito, ao sofrimento¿ E um dos pontos onde a obra ganha força é na ausência de respostas para isso. Tem-se apenas diversas perspectivas da pergunta, apresentadas de modo tão brutal quanto poético, mas nunca uma resolução. E aí  esbarramos no porquê ninguém poderia fazer um trabalho mais interessante que Michael Haneke com uma obra que possui esse mote, já que os longas do diretor são marcados pela chamada “estética do choque”.

No filme A Professora de Piano isso fica por conta do embate entre a “feiura” das imagens exibidas por Haneke em contraste com a beleza da música que Erika ensina a seus alunos. A progressiva tortura que os personagens impõe a si mesmos e em suas relações interpessoais e a dor que relacionamentos com potencial destrutivo instauram nos sujeitos, quando aliadas a aspectos mais técnicos da película, como as cores gélidas, a fotografia estática e os planos longos, são exatamente o que causam  o choque  no público:  construído a partir de uma linguagem cheia de luminosidade e viço,  A Professora de Piano  cria um universo repressor e violento, no qual perversão, crueldade, desamparo, subimissão e dependência se mesclam.
Fugindo de um código narrativo padrão, não observamos aqui personagens bem definidas, com objetivos claros, mas antes sujeitos impulsivos e ignorantes de seus próprios desejos. O estranhamento causado pelo filme, talvez, derive exatamente de suas personagens, uma vez que a identificação ou mesmo a empatia com sujeitos que multilam o próprio sexo, agridem idosos, violentam, esfaqueiam-se, retalham as roupas da filha ou tentam algum tipo de contato sexual com a própria mãe não é uma coisa que vêm facilmente para qualquer um. Então, pode-se dizer que o choque no filme de Haneke não soa como uma provocação gratuita ou um mero exercício de estilo, mas emana do confronto com os aspectos obscuros do  humano,  através de personas  frágeis e  desestruturadas. Então, o tema central de  A Professora de Piano não é a violência ou mesmo a perversão de sua personagem título, mas antes a perda de si mesmo.
Por tudo o que foi discutido, percebemos que o que Michael Haneke deseja oferecer com  A Professora é um painel de relações sociais e familiares problemáticas. Utilizando-se do arsenal teórico da psicanálise, como tentativa de revelar as raízes da violência, da crueldade e de tantas outras coisas “repulsivas” que se apresentam ao expectador durante as duas horas de projeção do longa, em última instância, o choque, não vem do fato de o inimigo poder morar ao seu lado, mas antes do fato de que ele reside em nosso interior.