9 de junho de 2012

O Sonho de Narciso



    Nada retorna ou se repete. A unicidade própria de cada momento passado é o que faz a realidade imensurável das coisas. "Tudo é real" porque só o é uma vez, é possível e não pouco provável que, para algumas situações, os moldes caibam repetidos, mas estes serão, de certo, mais justos ou largos e nunca, indizivelmente sobre nenhuma variante, virão simétricos no encaixe.

Narciso (1594-1596),
por Caravaggio  
    À sucessividade ininterrupta de feitos únicos no espaço/tempo damos o nome de vida e aos fragmentos que se unem para a construção dessa linha espaço-temporal chamamos Realidade. Para que as coisas existam cabe a elas serem diferentes, pois do contrario, sendo iguais, estariam sempre em uma estática imutabilidade.
   No entanto, a impossibilidade é a atração primeira do homem. A força que lhe não compete frente ao fluxo natural e ininterrupto do tempo gerou a vontade pungente de reter essa sequencialidade inveterada, de coletar um fragmento do Real guardando o instante que se há de perder e eternizando uma passagem especifica na corrente dos acontecimentos.
     Muitas vozes, das quais não indicaremos as bocas, compuseram a resposta, para os ditos quereres antigos da humanidade, que se haveria de dar em meados do século XIX, em Paris – França, com a invenção de Louis Jacques Mandé Daguerre [1]: a gravação das imagens geradas na câmara escura [2] através de uma processo denominado daguerreotipia (fotografia) e o diorama [3].
    Deixemos, se a viagem nos for possível, o século de aqui para tentar o século do “estado eterno” e verificar, simulando, como se deu a recepção da novidade.
     Ao pintor se diria, pelo grau que a maravilha alcançava, que se via ali a cena própria e ao vivo, tamanha a verossimilhança e fidedignidade da reprodução. Ainda diriam, os admiradores em aflição apaixonada, que era tudo aquilo fruto da própria natureza, sendo a imagem, sem intromissão do homem, obtida pela ação da luz. Nasce, ao pé da aparição da coisa em si, um dos seus mais marcados estigmas: é a fotografia mera reprodução da realidade? Cabe a ela o nome de Arte?
A Persistência da Memória (1931),
por Salvador Dali.
    A Máquina estava, inquestionavelmente, entre os membros honorários do século. O poder aquisitivo ascendera com a queda de preços proveniente da industrialização. O inatingível parecia cogitável e o cogitável era, de fato, atingível. Um indivíduo poderia ter acesso a um incontável número de bens que antes não lhe seria comum. Dentre as aquisições, agora alcançáveis, se achava a ladina dos fragmentos reais, a “maquina de pintar”.
   Ao homem-da-rotina, engolido pelos afazeres diários, foi dada a possibilidade de olhar da margem, aceitando-se como espectador na roda viva dos fatos e imitando o oficio dos filósofos. A fotografia, consecutivamente o cinema e a televisão, proporcionou-lhe uma amplitude muito maior com relação ao seu universo. Há na imagem um carácter universal liberto das fronteiras estabelecidas pela escolaridade e a língua que favoreceu essa explanação.
   Delaroche declarou a morte da pintura pela fotografia e Delacroix, em contra ponto, lamentou seu nascimento tardio. Edgar Allan Poe viu a maravilha em sua verossimilhança e reprodutibilidade do real e Marshall McLuhan sentenciou em tom profético: “Eis o passo decisivo da era do Homem Tipográfico para a era do Homem Gráfico”.
   Desatrelada a qualquer que seja a opinião, é a imagem, de forma inenarrável, senhora de uma responsabilidade para com a forma que indivíduo contemporâneo encara o Real e este, caro leitor, nos parece ser fato consumado na busca pelo jus lugar da fotografia.



1- (Cormeilles-en-Parisi, Val-d'Oise, 18 de novembro de 1787 — Bry-sur-Marne, 10 de julho de 1851) foi um pintor, cenógrafo, físico e inventor francês, tendo sido o autor da primeira patente para um processo fotográfico (1835 - o daguerreótipo).

2 - Recurso utilizado e estudado desde o século XVII como instrumento auxiliar de desenho. 

3 - Modo de apresentação artistica, de maneira muito realista, de cenas da vida real para exposição com finalidades de instrução ou entretenimento. A cena que pode ser uma paisagem, plantas, animais, eventos históricos, etc, é pintada sobre uma tela de fundo curvo, de tal maneira que simulem um contorno real. A tela colocada na obscuridade e iluminada de maneira adequada dá uma ilusão de profundidade e de movimento, dando a impressão de tridimensionalidade.