10 de junho de 2012

Narrativa e música – continuação




"Onde se guarda a música enquanto não soa?"
(Perto do coração selvagem).

Sobre o romance Perto do coração selvagem[1], Antonio Candido escreveu que, para a escritora Clarice Lispector, “a meta é, evidentemente, buscar o sentido da vida, penetrar no mistério que cerca o homem”, consciente de que “existe uma certa densidade afetiva e intelectual que não é possível exprimir se não procurarmos quebrar os quadros da rotina e criar imagens novas, novos torneios, associações diferentes das comuns e mais fundamente sentida”.
As reflexões que aparecem na narrativa expõem a questão de como encontrar a expressão para dizer as sensações vividas. O capítulo “O banho”, que marca a passagem de Joana criança para Joana mulher, termina com a descrição das sensações que Joana teve um dia quando, sentada em uma Catedral, ouviu, subitamente, o som de um órgão. Seus nervos e seu cérebro encheram-se de sons. E ela declara: “Eu não pensava pensamentos, porém música” (PCS, p.84).
Na narrativa, a música está, em diferentes momentos, associada ao pensamento da protagonista que teme pôr em palavras os sentimentos, explicando-se: “porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo” (PCS, p.29). Temendo que as palavras aprisionem aquilo que sente confusamente, Joana vai apoiar-se na mais imaterial de todas as artes, a música, pois, para ela, “a música era da categoria do pensamento, ambos vibravam no mesmo movimento e espécie. Da mesma qualidade do pensamento tão íntima que ao ouvi-la, este se revelava” (PCS, p.54). Porém, é importante ressaltar que a aproximação entre música e pensamento, para Joana, está relacionada ao momento inaugural da música, quando ela ainda não se fixou no pensamento, pois revela:

Deixava até de sentir a harmonia quando esta se popularizava – então não era mais sua. Ou mesmo quando a escutava várias vezes, o que destruía a semelhança: porque seu pensamento jamais se repetia, enquanto a música podia se renovar igual a se própria – o pensamento só era igual a música se criando. (PCS, p.54).

Joana deseja que seus pensamentos se constituindo em palavra sejam como música se criando. Observa-se a referência ao órgão, instrumento preferido do compositor Johann Sebastian Bach, a quem Joana se refere algumas vezes, especialmente em uma folha de caderno encontrada por Otávio, onde se lê: “A beleza das palavras: natureza abstrata de Deus. É como ouvir Bach” (PCS, p.140). A referência ao compositor é bastante significativa tendo em vista a narrativa como exercícios musicais nos quais à voz da narradora-personagem vem juntar-se outras vozes, e o fato de que, na música de Bach, como escreveu Wisnik (1989, 119): “a polifonia se consuma e finda, e a homofonia, que apontará para os desenvolvimentos futuros do discurso tonal –, a música bachiana parece conter em si a música toda, a condensação do passado e do futuro”.

CANDIDO, Antonio.  “No raiar de Clarice Lispector”. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

MIGLIACCIO, Luciano. Poemas de mármore: Michelangelo escultor e poeta nas Lezioni de Benedetto Varchi. Rev. bras. Hist. [online]. 1998, vol.18, n.35, pp. 207-216. ISSN 1806-9347. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01881998000100009.

WISNIK, José Miguel Soares. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.


[1] Ao longo do texto, o romance será referido pelas inicias PCS.