14 de junho de 2012

Rosalía de Castro: Breve Apresentação



   Resguardou-se de mim o início que a tecla nega a firmar e, ao contrario de Drummond, não sei do seu paradeiro, nem sinto “inundar” o momento. Se a voz leve me falta, faço uso do tom pesado doutro que está, injustamente, às margens, para apresentar quem merece a presença:

“A literatura de um povo é o desenvolvimento do que ele tem de mais sublime nas idéias, de mais filosófico no pensamento, de mais heróico na moral e de mais belo na natureza; é o quadro animado de suas virtudes e de suas paixões, o despertador de sua glória e o reflexo progressivo de sua inteligência.” Gonçalves de Magalhães / Discurso sobre a Historia da Literatura do Brasil

   Ermado Leitor, o espírito progressista e a alma de um povo codificam o âmago dessa poesia. O Silêncio da crítica esteve, no correr dos anos, a gerar o que configuraria-se no mito. Rosalía de Castro transcendeu à figura histórica e literária tornando-se um simbolo cósmico, uma corporificação do espirito galego.
  Nascida em Santiago de Compostela a 24 de Fevereiro de 1837, Rosalía recebe, na sua juventude, formação em Musica, Artes e Literatura; torna-se parte das atividades do Liceo de la Juventud, ponto de encontro dos intelectuais provincialista - perpassou todo o correr de sua obra as influencia socialistas e o ideário republicano assimilado neste período de sua vida. Mudou-se para Madri em 1856, casando-se dois anos depois com Manuel Murguía, então investigador, cronista e jornalista. Nasce sua primeira filha, Alejandra, em 1859, quando o casal retorna para Galícia. Em 1861, novamente em Madri, publica seus primeiros escritos em galego e castelhano. Durante o tempo que se seguiria até seus quarenta e oito anos quando morre de cancro (1837), daria a luz à Aura, nascida em Dezembro de 1868; Gala e Ovídio, gêmeos, nascidos em Julho de 1871; Amara, nascida em Julho de 1873; Adriano Honorato Alejandro, nascido em Março de 1875 e Valentina, nascida morta em Fevereiro de 1877.
   Pioneira no uso do galego em categoria literária e adotando a língua não oficial - castelhano - para a grande maioria de seus escritos, a poetisa transforma-se em um atrativo para o esquecimento que mais tarde séria de profundo inconveniente para a crítica. Ignorando a origem comum separa-se, ainda hoje, sua produção galega da castelhana como se não fossem nutridas da mesma força vital.
  Situada entre o lírico e o social, se bem cabe a ilusão desta fronteira, no espelho vivo de cada verso não só a poetisa se reflete, mas também todo seu povo. Deixo, para deleite, dois poemas do original em galego, notará o Leitor a semelhança.


I - VAGUEDÁS


I

Daquelas que cantan as pombas i as
frores,
todos din que teñen alma de muller.
Pois eu que n'as canto, Virxe da Paloma,
ai!, de qué a teréi?


II

Bem sei que non hai nada
Novo en baixo do ceo,
Que antes outros pensaron
As cousas que ora eu penso.

E bem, ¿para que escribo?
E bem, porque así semos,
Relox que repetimos
Eternamente o mesmo.





13 de junho de 2012

Leitura e Contemporaneidade




A educação que é oferecida à maioria de nossos alunos se mostra como uma silenciosa injustiça, pois há nas prateleiras o livro que a escola possui e que geralmente não é lido. O teatro que não é visto, a música que não é ouvida, a pintura que não é apreciada, o filme que não é assistido ou talvez, é assistido como entretenimento e não como enriquecimento, tudo isso ligado a uma cultura não leitora. O pouco que é oferecido vem sempre como migalhas, deixando a cada um a possibilidade de aprimoramento e de busca por mais e novas experiências. Eis aí tamanha injustiça, pois se o saber não passa pela escola, dificilmente passará por outra instância.
Vivemos atualmente na era da informação. Quem tem informação sabe onde investir, onde plantar. Quem tem tecnologia, informação, domina o mundo. Um país com milhões de analfabetos fica pra trás. Magda Soares nos diz que:

para se ter acesso ao mundo da leitura e da escrita e nele poder viver, são necessários dois passaportes: o domínio da tecnologia da escrita – o sistema alfabético e ortográfico – passaporte que se obtém com o processo de alfabetização; e é preciso ter desenvolvido competências de uso dessa tecnologia – saber ler e escrever em diferentes situações e contextos – passaporte que se obtém com o letramento. (SOARES, 2006. p. 03).

O Brasil necessita aumentar seu número de acesso à cultura letrada. Essa formação necessita, de forma adequada iniciar e se desenvolver na escola. É preciso letrar, e ainda, discutir na contemporaneidade, a evolução do pensamento crítico de nossos alunos/cidadãos. Pensando nessa ideia, Maria Antonieta Pereira contribui muito ao afirmar que:

Evidentemente, não podemos formar leitores como se ainda estivéssemos no século XIX, em que a grande mídia era o texto impresso, muito bem representado pelo folhetim, gênero que mistura jornal e romance. Contudo os problemas de alfabetização e letramento em países como o Brasil não terminam aí: em pleno terceiro milênio, ainda temos milhões de analfabetos e semi-analfabetos, o que contribui para reduzir violentamente os níveis de leitura da população em geral. (PEREIRA, 2007, p. 37).

            Indo na perspectiva dessa autora, entendemos que, realmente não podemos formar leitores no século XXI, se utilizando de práticas tradicionais. Se de fato, buscamos uma leitura literária prazerosa na sala de aula, por que não partir do contemporâneo, das práticas atuais de linguagem?
            O Brasil é uma nação formada, simultaneamente, por analfabetos, analfabetos funcionais, alfabetizados, leitores médios, leitores de alto nível etc. E ainda, se é verdade que qualquer país do mundo também comporta essa variedade de leitores, também é verdade que o nosso problema é mais grave porque temos uma alta porcentagem de analfabetos e semi-analfabetos e uma baixíssima porcentagem de leitores formados nas habilidades e competências requeridas pela contemporaneidade.
            Assim, num país com tamanha desigualdade social, um dos mais seguros mecanismos de promoção social é o desenvolvimento da competência leitora e da produção de variados textos sociais, os quais se espera que possam ser desenvolvidos na escola. Faz-se necessário então que as práticas escolares de leitura se utilizem das atuais demandas do terceiro milênio que ultrapassam o impresso, tais como a televisão e o computador.
            A explosão dos meios audiovisuais fortalece a exploração conjunta, de aspectos de um novo processo de ensino-aprendizagem, um processo que envolva a leitura do texto e consequentemente a leitura da vida. Se o que rodeia nossos alunos é a imagem, temos que começar já a se valer do computador, da televisão, do cinema e assim, promover a circulação da literatura de forma hipertextual. O contato com o literário, para o público que se encontra nas salas de aula hoje, certamente, será mais vivo, prazeroso. A utilização da imagem fortalecerá a leitura das obras canônicas em versões impressas ou mesmo em versão online.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PEREIRA, Maria Antonieta Pereira. Jogos de linguagem, redes de sentido: leituras literárias. In: PAIVA, Aparecida. Et al. Literatura: saberes em movimento. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

SOARES, Magda. Qual a diferença entre a alfabetização de crianças e a de jovens e adultos? Jornal Letra A Especial, Belo Horizonte, ano 2, Edição Especial, p. 3, jun/jul. 2006. < http://www.ceale.fae.ufmg.br/nomade/midia/docs/150/phphxxomL.pdf> acesso em 05 de junho de 2012.



11 de junho de 2012

Ensaio sobre a lucidez do “Discurso da difamação do poeta” de Affonso Ávila





            O próprio Affonso Ávila (1928 -   ) ao se autoanalisar definiu sua poesia como referencial, que se baseia “no calculo dos efeitos imediatos ou remotos de recursos utilizados para comunicação” e “no arredondamento final do poema como objeto artístico, uno e acabado” (ÁVILA, 2008). A lucidez de sua autocrítica perpassa também sua obra, que utiliza-se até mesmo de ambiguidades propositais, como em Cantaria Barroca, pois o livro lançado em 1975 não se trata apenas de uma simples referência ao Barroco, indo além disso, pois cantaria é o nome de uma pedra que usada na construção da histórica cidade de Ouro Preto.
            Cantaria Barroca é considerado o livro mais “visualista” do poeta, pois as formas como as palavras se compõem nos versos da obra recompõem o desenho das pedras barrocas tão comuns na cidade mineira. Essa lucidez espalha-se em outras obras do autor que ao lado de nomes como Fábio Lucas, Rui Mourão e Fritz Teixeira de Salles, fundou em 1957 a revista Tendência, considerada uma das mais importantes revistas da chamada geração vanguardista, período que vai de 1956 com o Concretismo até 1968 com o seu esgotamento no Tropicalismo.
            Esse período por vezes é esquecido ou pouco comentado nas academias de Estudos Literários, talvez por se tratarem de vanguardas, sempre à margem do “cânone esperado”, ou por estarem apagados pelo brilho da Geração de 45, sempre sustentada pelo “engenheiro das palavras” João Cabral de Melo Neto. O fato é que independente disso, esse período existiu e se dividiu em duas vertentes, sendo uma mais voltada a forma em si, ao visual, onde destacamos o próprio Concretismo e o Poema Processo.
            A segunda vertente dessa vanguarda voltou-se mais para o “aspecto semântico, verbal e escrito do discurso poético” (SANT'ANNA, 1978) onde se destacam a revista Tendência, Praxis e  por fim, o movimento Tropicalista, que encerrou tais vanguardas. Portanto, a poesia de Affonso Ávila é enquadrada nessa segunda “tendência”, mesmo utilizando-se intensamente do visual, como já citado.
            Porém, “Ávila trilhou pelas vanguardas de seu tempo sem filiar-se à elas” (CIRNE, 2012) e ainda soube recolher a síntese e o apelo gráfico tão comum a poesia concretista. O que o fez de forma lucida, mantendo-se híbrido ou concreto quando necessário. Essa “lucidez” é claramente percebida em seu livro O discurso da difamação do poeta, em que o poeta aqui faz vários discursos, até mesmo contrariando a sua autocrítica do texto encerrar-se no texto, sendo realmente um discurso de difamação.
            Composto por onze poemas, o livro lançado em 1978 “fornece ao leitor substanciosas indicações que problematizam a relação discurso artístico/discurso político”. Todos os versos do livro começam da mesma forma, “O poeta...” e todo poema encerra-se com uma frase (em caixa alta) impactante com relação ao poeta.  Todas essas frases são na verdade sentenças da atitude do poeta “O POETA É UM DESEQUILIBRADO MENTAL” ou das atitudes contra o poeta “A ATITUDE DIANTE O POETA É O BOCEJO”.
            O que se vê nos versos é a desconstrução do “poeta” que fulmina na última frase já como um quase caso perdido ou como alguém as margens da sociedade, um plagiário que também é terrorista, um traficante de drogas que ainda está preso ao umbigo da mulher. A lucidez do discurso de Ávila critica até mesmo a tal “alienação” das vanguardas, pois o período era caloroso em relação à questões políticas e sociais no país que via Juscelino Kubitschek transportar a capital da nação para Brasília. Em períodos assim, dizem ser comum os escritores evadirem para uma arte mais voltada para forma, assim como os concretistas fizeram, porém, Affonso Ávila escolheu não apenas reconstituir as ruas de Ouro Preto, mas elevou-se a criar um discurso “contra” o fazer poético.
            Vale ressaltar que o próprio Affonso Ávila foi também influenciado pela geração de 45 (ou simplesmente João Cabral de Melo Neto), mas sua poesia não ficou somente na estrutura de uma crítica social quase inacessível devido as armadilhas da forma, pois o seu “contra-discurso” pode ser observado hoje numa perspectiva diferente, assim como a própria cidade de Brasília, nossa capital, tão vigorosa na forma de seus prédios e principalmente de sua Catedral, mas foi somente a partir da “contra-forma” da Catedral de Brasília que criou-se novos discursos com relação ao templos católicos, da mesma forma fez Ávila, pela forma lúcida, criou novos discursos.

Dois poemas de Affonso Ávila:

O primeiro faz parta da obra Cantaria barroca.
& em cada conto te cont
o & em cada enquanto me enca
nto & em cada arco te a
barco & em cada porta m
e perco & em cada lanço t
e alcanço & em cada escad
a me escapo& em cada pe
dra te prendo & em cada g
rade me escravo & em ca
da sótão te sonho & em cada
esconso me affonso & em
cada cláudio te canto  & e
m cada fosso me enforco&

ARTE DE FURTAR

O poeta declarou que toda criação é tributária de outras
criações no permanente processo de linguagem da poesia

O poeta afirmou que todo criador é tributário de outros no
processo de linguagem da poesia

O poeta se confessou um criador tributário de outros na
linguagem de sua poesia

O poeta não esconde que sua poesia é tributária da linguagem
de outros criadores

O poeta não esconde que sua poesia é influenciada pela
linguagem de outros criadores

O poeta não faz segredo de que se utiliza da linguagem de
outros poetas

O poeta fala abertamente que se apropria da linguagem de
outros poetas

O poeta é um deslavado apropriador de linguagens

O POETA É UM PLAGIÁRIO



Referências:
ÁVILA, Affonso. Homem ao termo: poesia reunida (1949-2005).   Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
CIRNE, Moacy. Disponível em < http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/affonso_avila_ensaio.html> Acesso em 9 de junho de 2012.
SANT'ANNA, Affonso Romano de. In ÁVILA, Affonso. Discurso da difamação do poeta. São Paulo: Summus Editorial , 1978.  





10 de junho de 2012

Narrativa e música – continuação




"Onde se guarda a música enquanto não soa?"
(Perto do coração selvagem).

Sobre o romance Perto do coração selvagem[1], Antonio Candido escreveu que, para a escritora Clarice Lispector, “a meta é, evidentemente, buscar o sentido da vida, penetrar no mistério que cerca o homem”, consciente de que “existe uma certa densidade afetiva e intelectual que não é possível exprimir se não procurarmos quebrar os quadros da rotina e criar imagens novas, novos torneios, associações diferentes das comuns e mais fundamente sentida”.
As reflexões que aparecem na narrativa expõem a questão de como encontrar a expressão para dizer as sensações vividas. O capítulo “O banho”, que marca a passagem de Joana criança para Joana mulher, termina com a descrição das sensações que Joana teve um dia quando, sentada em uma Catedral, ouviu, subitamente, o som de um órgão. Seus nervos e seu cérebro encheram-se de sons. E ela declara: “Eu não pensava pensamentos, porém música” (PCS, p.84).
Na narrativa, a música está, em diferentes momentos, associada ao pensamento da protagonista que teme pôr em palavras os sentimentos, explicando-se: “porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo” (PCS, p.29). Temendo que as palavras aprisionem aquilo que sente confusamente, Joana vai apoiar-se na mais imaterial de todas as artes, a música, pois, para ela, “a música era da categoria do pensamento, ambos vibravam no mesmo movimento e espécie. Da mesma qualidade do pensamento tão íntima que ao ouvi-la, este se revelava” (PCS, p.54). Porém, é importante ressaltar que a aproximação entre música e pensamento, para Joana, está relacionada ao momento inaugural da música, quando ela ainda não se fixou no pensamento, pois revela:

Deixava até de sentir a harmonia quando esta se popularizava – então não era mais sua. Ou mesmo quando a escutava várias vezes, o que destruía a semelhança: porque seu pensamento jamais se repetia, enquanto a música podia se renovar igual a se própria – o pensamento só era igual a música se criando. (PCS, p.54).

Joana deseja que seus pensamentos se constituindo em palavra sejam como música se criando. Observa-se a referência ao órgão, instrumento preferido do compositor Johann Sebastian Bach, a quem Joana se refere algumas vezes, especialmente em uma folha de caderno encontrada por Otávio, onde se lê: “A beleza das palavras: natureza abstrata de Deus. É como ouvir Bach” (PCS, p.140). A referência ao compositor é bastante significativa tendo em vista a narrativa como exercícios musicais nos quais à voz da narradora-personagem vem juntar-se outras vozes, e o fato de que, na música de Bach, como escreveu Wisnik (1989, 119): “a polifonia se consuma e finda, e a homofonia, que apontará para os desenvolvimentos futuros do discurso tonal –, a música bachiana parece conter em si a música toda, a condensação do passado e do futuro”.

CANDIDO, Antonio.  “No raiar de Clarice Lispector”. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

MIGLIACCIO, Luciano. Poemas de mármore: Michelangelo escultor e poeta nas Lezioni de Benedetto Varchi. Rev. bras. Hist. [online]. 1998, vol.18, n.35, pp. 207-216. ISSN 1806-9347. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01881998000100009.

WISNIK, José Miguel Soares. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.


[1] Ao longo do texto, o romance será referido pelas inicias PCS.




9 de junho de 2012

O Sonho de Narciso



    Nada retorna ou se repete. A unicidade própria de cada momento passado é o que faz a realidade imensurável das coisas. "Tudo é real" porque só o é uma vez, é possível e não pouco provável que, para algumas situações, os moldes caibam repetidos, mas estes serão, de certo, mais justos ou largos e nunca, indizivelmente sobre nenhuma variante, virão simétricos no encaixe.

Narciso (1594-1596),
por Caravaggio  
    À sucessividade ininterrupta de feitos únicos no espaço/tempo damos o nome de vida e aos fragmentos que se unem para a construção dessa linha espaço-temporal chamamos Realidade. Para que as coisas existam cabe a elas serem diferentes, pois do contrario, sendo iguais, estariam sempre em uma estática imutabilidade.
   No entanto, a impossibilidade é a atração primeira do homem. A força que lhe não compete frente ao fluxo natural e ininterrupto do tempo gerou a vontade pungente de reter essa sequencialidade inveterada, de coletar um fragmento do Real guardando o instante que se há de perder e eternizando uma passagem especifica na corrente dos acontecimentos.
     Muitas vozes, das quais não indicaremos as bocas, compuseram a resposta, para os ditos quereres antigos da humanidade, que se haveria de dar em meados do século XIX, em Paris – França, com a invenção de Louis Jacques Mandé Daguerre [1]: a gravação das imagens geradas na câmara escura [2] através de uma processo denominado daguerreotipia (fotografia) e o diorama [3].
    Deixemos, se a viagem nos for possível, o século de aqui para tentar o século do “estado eterno” e verificar, simulando, como se deu a recepção da novidade.
     Ao pintor se diria, pelo grau que a maravilha alcançava, que se via ali a cena própria e ao vivo, tamanha a verossimilhança e fidedignidade da reprodução. Ainda diriam, os admiradores em aflição apaixonada, que era tudo aquilo fruto da própria natureza, sendo a imagem, sem intromissão do homem, obtida pela ação da luz. Nasce, ao pé da aparição da coisa em si, um dos seus mais marcados estigmas: é a fotografia mera reprodução da realidade? Cabe a ela o nome de Arte?
A Persistência da Memória (1931),
por Salvador Dali.
    A Máquina estava, inquestionavelmente, entre os membros honorários do século. O poder aquisitivo ascendera com a queda de preços proveniente da industrialização. O inatingível parecia cogitável e o cogitável era, de fato, atingível. Um indivíduo poderia ter acesso a um incontável número de bens que antes não lhe seria comum. Dentre as aquisições, agora alcançáveis, se achava a ladina dos fragmentos reais, a “maquina de pintar”.
   Ao homem-da-rotina, engolido pelos afazeres diários, foi dada a possibilidade de olhar da margem, aceitando-se como espectador na roda viva dos fatos e imitando o oficio dos filósofos. A fotografia, consecutivamente o cinema e a televisão, proporcionou-lhe uma amplitude muito maior com relação ao seu universo. Há na imagem um carácter universal liberto das fronteiras estabelecidas pela escolaridade e a língua que favoreceu essa explanação.
   Delaroche declarou a morte da pintura pela fotografia e Delacroix, em contra ponto, lamentou seu nascimento tardio. Edgar Allan Poe viu a maravilha em sua verossimilhança e reprodutibilidade do real e Marshall McLuhan sentenciou em tom profético: “Eis o passo decisivo da era do Homem Tipográfico para a era do Homem Gráfico”.
   Desatrelada a qualquer que seja a opinião, é a imagem, de forma inenarrável, senhora de uma responsabilidade para com a forma que indivíduo contemporâneo encara o Real e este, caro leitor, nos parece ser fato consumado na busca pelo jus lugar da fotografia.



1- (Cormeilles-en-Parisi, Val-d'Oise, 18 de novembro de 1787 — Bry-sur-Marne, 10 de julho de 1851) foi um pintor, cenógrafo, físico e inventor francês, tendo sido o autor da primeira patente para um processo fotográfico (1835 - o daguerreótipo).

2 - Recurso utilizado e estudado desde o século XVII como instrumento auxiliar de desenho. 

3 - Modo de apresentação artistica, de maneira muito realista, de cenas da vida real para exposição com finalidades de instrução ou entretenimento. A cena que pode ser uma paisagem, plantas, animais, eventos históricos, etc, é pintada sobre uma tela de fundo curvo, de tal maneira que simulem um contorno real. A tela colocada na obscuridade e iluminada de maneira adequada dá uma ilusão de profundidade e de movimento, dando a impressão de tridimensionalidade.