Há muitas formas de pensar a relação entre literatura e música. Uma delas diz respeito a aproximação com a narrativa. E um exemplo disso pode ser percebido no romance Perto do coração selvagem (1944), de Clarice Lispector, que começa assim:
A MÁQUINA DO PAPAI batia tic-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se ZZZZZZ. O guarda-roupa dizia o quê? roupa-roupa-roupa. Não, não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta. Os três sons estavam ligados pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da árvore que se esfregavam umas nas outras radiantes.
[...]
Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a funcionar [...] Só faltava o tin-dlen do relógio que enfeitava tanto. Fechou os olhos, fingiu escutá-lo e ao som da música inexistente e ritmada ergueu-se na ponta dos pés. Deu três passos de dança bem leves, alados. (PCS, p.19-20).

PONTIERI, Regina. Clarice Lispector: uma poética do olhar. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
SIQUEIRA, Joelma Santana. À procura de objeto gritante: um estudo da narrativa de Clarice Lispector.. Tese de doutorado defendida pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas –FFLCH/USP, 2008.
WISNIK, José Miguel Soares. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.